quinta-feira, maio 05, 2011

Nu

Sobre a cama uma camisa xadrez pendendo para o vermelho e uma calça jeans que por pouco não era preta. Os livros que foram usados numa tentativa fracassada de entender mais sobre economia. As embalagens agora inúteis que envolviam as guloseimas altamente calóricas ingeridas há pouco. O computador que contava com uma fotografia antiga da família reunida, a qual estampava o plano de fundo da tela. Havia também alguns rabiscos desalinhados dos planos do futuro.
Vestiu a camisa xadrez que pendia para o vermelho e a calça jeans que por pouco não era preta. Sentou à beira da cama e se agachou pra apanhar o tênis um tanto velho, esticando os braços por debaixo dela pra alcança-lo. O enfiou em seu pé e sem demora amarrou os cadarços do All Star cor bordô. Foi até o banheiro, arrastou sua mão sobre o espelho pra tirar a umidade, buscou sua imagem nele. “Já estive melhor”, pensou. E então ensaiou um sorriso amarelo, de canto. Péssimo, falso demais.
Era mais um dia em que teria de fingir ser o que não era, e por sorte até acreditar que podia ser de fato. Teria de fingir que tudo ia bem, que as pessoas eram agradáveis e que fazia exatamente o que sempre desejou. Teria de fingir – ou esquecer, quem sabe – tanta coisa. Não sentia dor nunca, não ficava enjoado, não se incomodava com o calor, pensavam. Deveria ser assim. E então fingia – fingia esquecer.
Levantou da cama, apagou a luz do quarto, saiu de casa. Fez tudo o que fazia em todos os dias. Encontrou as pessoas que via sempre. Amigos, parentes, conhecidos. Os mesmos problemas de rotina, o mesmo trânsito insuportável, o mesmo chefe arrogante, a mesma secretária oferecida, o mesmo assessor fofoqueiro – a mesma vida exemplar – a mesma máscara de ontem, de antes, de antes, de sempre.
Quem o via de fora não imaginava o que estava por trás do sorriso amarelo, de canto. Não notava que na verdade ele era péssimo, falso demais. Não imaginava que a discussão com o irmão mais novo logo cedo o perturbou, que sentia saudades da mãe morta por câncer e que havia uma porção de coisas que o incomodava. Não imaginava que ele havia perdido seu grande amor numa das voltas de sua vida, que estava cheio de contas pra pagar e que o seu dia estava uma merda. De longe, até parecia feliz.
“Cansei disso”, gritou. Gritou pra quem estivesse perto e quisesse dar atenção ao que falava. E gritou pra si mesmo. Logo em seguida ecoaram frases perdidas no ar. Um senhor, que andava por ali, aos poucos foi ficando imóvel, e em instantes estava absolutamente atento ao que o rapaz esguio berrava descontroladamente. “Cansei de andar na linha!”, anunciou a todos. E então, aproveitando o surto de sinceridade e de coragem que o havia dominado, berrou todas as suas angústias, os seus medos, os seus anseios – as inseguranças. Foi ouvido.



“Quem sabe quem sou? E se eu te falar que não sou essa porcaria que você pensa de mim? Sou tímido, você diria – e eu concordaria. Mas eu não sou só tímido. Te digo que a minha timidez é bem diferente da minha vergonha. Se você é tímido, você é até mesmo sem motivo. É uma característica sua. Está no pacote, não tem volta. Você pode ser tímido mesmo sem temer a opinião dos outros. É uma dificuldade – de expressão, dizem por aí. Agora a vergonha não, e é dela que fujo agora. Por que eu teria vergonha de mim? Eu tive, admito. Até minutos atrás, você diria – e eu concordaria. Por vergonha de mostrar a própria face, a gente inventa um milhão de máscaras. Cada uma pra um lugar, pra um grupo. Ou mais deprimente ainda, cada uma pra uma pessoa diferente – quem duvida?
“Me diz. Como fiquei sem máscara alguma no rosto? Fico bem? Diz. Como é me ver assim? Meu rosto deve estar te dizendo um monte de coisa agora, não? Sincero. Limpo. Despido. E aí? Me diz o que está vendo? Um cara pateticamente inseguro. Cheio de receio. Covarde. Um cara que perdeu uma porrada de oportunidades. Que se pelou de medo quando tudo o que deveria fazer era se jogar no que queria. Um cara que se escondeu de tudo, que escondeu todos os sentimentos, as vontades, os desejos – as saudades. E se eu tivesse feito diferente? Se eu tivesse confessado tudo, jogado todas as cartas na mesa de uma vez? Se eu tivesse falado, sempre, o que eu sentia? Te digo. Eu seria o veado da família. A bicha sentimental! Homem não chora, me disseram. Não sente. Homem é pedra.
“Não. Eu não sou pedra, porra nenhuma! Assim como não sou determinado, como sempre digo. Pareço, não é? Ah, pareço forte, também? Sobrevivência, meu chapa. Quem se mostra fraco é atropelado pelos supostos fortes. Não existe vez pra quem chora, pra quem não sorri o tempo todo, pra quem anda se machucando nessa droga de mundo. Não existe vez pra quem sente na pele a dor de ser sozinho.
“Eu sou sozinho porque eu tenho medo de gente e a gente tem medo de gente que teme a gente. Entendeu, meu amigo? Essa é a verdade! Eu não sou sozinho, você diria – e eu discordaria. Eu amo uma garota que nem imagina que eu ainda existo. Minha namorada? Não. Não falo dela. Eu não amo minha própria namorada, meu Deus! Eu não tive coragem de terminar e lá se foram três anos de fingimento. De “eu te amo” sem amor, de uma porção de “vai ser pra sempre” torcendo pra não ser de fato. Quantos segredos uma máscara bem colocada pode preservar? Fui montado por mim mesmo, escolhi o que queria mostrar ao mundo e mostrei. Segui o que aprendi com a vida, ou senão eu me fodia. Fui obrigado, meu irmão. Fui farsa. Fui mentira.
“Fui. Fraco.
Estava sentado. No chão de uma rua movimentada. As pessoas que circulavam não deram importância, apenas o desviavam sem muita dificuldade. O senhor ainda estava ali, em pé, do seu lado. Como se esperasse mais palavras. Como se esperasse ainda mais semelhanças entre os dois. E realmente aguardou durante algum tempo, mas o rapaz não desempenhou qualquer tipo de ação. Continuava sentado, parado. Arrasado, diriam.
E enfim, levantou. Andou. Andou sem propósito. Andou. Não foi ao trabalho, não deu satisfação. Não viu parentes, amigos, conhecidos. Nem enfrentou trânsito. Não teve de suportar o chefe, a secretária, o assessor. Não colou no rosto o típico sorriso amarelo, de canto, porque ele seria péssimo, falso demais. Andou.
Abriu a porta de casa. Vazia, oca, sem ninguém esperando. Sentou em sua cama. Arrancou o tênis All Star cor bordô. Tirou a camisa xadrez que pendia para o vermelho e a calça jeans que por pouco não era preta. Deitou.
Amanhã seria um dia melhor, pensou. E seria. Mas hoje, agora, ele queria apenas continuar deitado. Fugindo dos pensamentos, para que eles não lhe tirassem o alívio que permanecia no peito. Sim, estava aliviado. Porque sabia que amanhã seria um dia diferente, não poderia parar de fingir, mas de qualquer modo, fingiria bem menos.
E então, fechou os olhos.

5 comentários:

  1. Pura - e dolorida - verdade. É difícil - e necessário - encontrar, todos os dias, um jeito de ser um pouco mais real, um pouco mais nós mesmos, sem ligar para os outros, e focar no essêncial que só a gente sabe, pra não cansar tanto. E se ainda assim fingir for preciso, que seja pra aliviar dores que ainda não estamos prontos para sentir. Se não houvessem máscaras, não haveria o prazer de descobrir como tirá-las.


    Filosofei demais. ow God, só concordar seria melhor, mas vamos lá, to aproveitando e repetindo pra mim mesma.

    Amei Thi :) como sempre.

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  2. Bom... depois desse texto e o comentário filosófico da Ana, melhor eu ficar quieta rs
    Admiro o dom de vcs. Tem mais é que escrever MUUUITO! rs
    Quanto as máscaras... quem nunca as usou, por minutos que fossem, que atire a primeira pedra.

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  3. Uouuu!!! Fui junto nisso tudo. O cara da camisa xadrez poderia ser você, eu, ou tantos e tantos por aí. Cada trecho me fez viajar - e muito!!!

    :)

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  4. adoro teu dom de escrita, já te falei isso mas não canso de repetir.
    sempre lindo thi!

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  5. mais um texto novo e um velho leitor admirador aqui (insopitável.eu.Guarany) ... volta e meia apareço por aqui embora não consiga postar minhas opiniões estou aqui.. vamos ver se consigo agora.. Parabéns amigo!!! abraço!!!

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